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terça-feira, 12 de outubro de 2021

Conto 'O Berço de Monstros'


Aquele Império tirânico vendo que a medida de sua falência moral se tornara a brutalidade do ódio e medo com que intimidasse e passasse a se impor a força, sabia pois estar derrotado ante a lei e os fatos por agora se esgueirar em maior parte nas sombras da clandestinidade e informalidade normalmente velada. E por isso ampliou sua agência de espionagem e informações nas chamadas Operações Antissociais, que visava dentre outras coisas serviços sujos de terror e sabotagem, afim de se infiltrarem nos adversários e minarem ao criassem incidentes de falsa bandeira, com a intensão de desvalorizar e enfraquecer determinada região, religião ou política. Todavia por ser um serviço brutal e grosseiro quase ninguém tinha estômago para as missões, ainda que os chefes do programa usassem de métodos como do 'efeito Lúcifer' afim de gerar a cauterização de consciência necessária para a missão, muitos fora do contexto do treinamento desistia no percurso ainda que mediante promessas de recompensas robustas. Por isso o superintendente abriu uma extensão da Operação Antissocial para recrutamento de potenciais psicopatas e sociopatas. Obviamente os anúncios eram discretos, e o chamado na surdina de becos e lugares propícios era comum. Todavia eles aprimoraram o método de Adolf Hitler e sua S.A. que recrutava os marginalizados e criminosos da época, pois sabendo que determinadas circunstâncias e condições sociais eram favoráveis a identificar novos agentes potenciais. 
Com os estímulos certos e pressões corretas o candidato era selecionado a Escola Sombria da Psicopatia, onde todo o histórico dos selecionados, mediante juramento de sigilo, era levantado afim de atingir ao menos 17 pontos na escala Hare, e que dessem sinais irrecusáveis da tríade negra e Dark Tetrad, ou ao menos inclinações e tendências que pudessem ser "aprimoradas". As baterias de exame ao invés de buscar os melhores do caráter, integridade, inteligência, fidelidade e honestidade, mirava nos mais cruéis, basicamente os piores dos piores. Por isso nas avaliações psicológicas e psiquiátricas CIDs como narcisismo, sadismo, parafilia e voyeurismo tinham que ser predominantes. Sob a fachada de oficialidade onde figuravam funcionários que eram supostamente o oposto, em seus porões e rincões internos basicamente era um berço de monstros que durante o treinamento eram estimulados as facilidades da brutalidade sádica com desertores ou prisioneiros dos adversários, de técnicas de frieza a sistematização de tortura psicológica e sexual eram ensinadas a objetivar infligir o maior sofrimento possível as vítimas com fins de recruta-la e transforma-la em agentes "zumbis" programados pelo intenso e constante trauma. Quando terminavam com as vítimas elas eram pouco mais que cascas vazias, que com olhares opacos ou tristes, com olheiras, pareciam destroçados na alma a seguir de modo acrítico uma reprodução da programação como um robô. 
Os executores do processo eram ensinados a enxergar seu poder sobre a vítima como algo libertador, um verdadeiro poder sadicamente hedonista ao desatar quaisquer compromissos éticos, morais ou legais ao liquefazer a empaia. Era, em suma, o poder da escuridão absoluta. Obviamente drogas em ambos eram ministrados com fins de enclavinhar os CIDs dicotômicos entre algoz e presa, tornando a presa mais sugestionável e uma droga experimental chamada indopatia capaz de extinguir quaisquer resquícios de remorso e afeição aos atos do algoz. A aula era o medo e ódio e a dependência da indopatia de seus agentes tornava-os submissos a seus superiores a espera sempre da próxima dose. A duplicidade oficial da agência era de uma novilíngua orweliana ao ser chamado oficialmente de Centro de Controle Social. 
O CCS onde a Operação Antissocial era feita tinha assim por objetivo operar através do terror psicológico seus cidadãos e destruir as comunidades rivais ou adversárias por dentro. Assim enquanto uma face sorria a luz do Sol dizendo promover paz e bem-estar sabíamos que os dominantes davam óculos míopes para olhos são, os que faz a ilusão. A sede daquela surcuçal diabólica era onde outrora havia uma colônia de férias até ser tomada pela ditadura agora vigente.
O que não se sabia era o fato de que em tempos ainda mais anteriores, poucos séculos antes, operava uma Casa Grande onde a história relatava que a maldade desde então impregnava o engenho, um tomateiro onde escravos eram torturados, estuprados e mortos em rituais grotescos. Ainda eram frescos os relatos de décadas atrás quando um casal em Lua de Mel fora lá passar na então colônia, vindo a encontrar ao derrubar uma parede, sem querer, os restos mortais de uma negra grávida no meio de um pentagrama.
Parece que a crueldade era uma tradição localizada, de uma terra amaldiçoada de modo atemporal, perene como a ideia de um fascismo eterno.
Independente das mudanças e avanços no mundo a maldade imutável sempre trará mais uma rodada de atrocidades em ciclos perpétuos até se libertar. Algo nos porões por décadas transformava agora seres humanos em monstros. Tais criados sob constante terror e humilhação se tornam condicionados ao ódio para propalar atrocidades de seus mestres, e caso não aceitassem empurrar seus planos sádicos de sofrimento, eles seriam as vitimas.
Todavia, um desses Adailton Figueira, um negro que era filho ilegítimo e por isso era molestado pelo pai, o matou quando o pegou sua mãe sendo por ele espancada. Perturbado pelo crime cruel logo caiu nas ruas e pelo CCS logo fora recrutado por sua especial crueldade em torturar e matar vítimas do tribunal paralelo. Após ostensivo programa preparatório ele se tornou uma máquina sem remorsos e preferencialmente sádica para eliminar seus alvos como exemplo de violência simbólica aos que ousassem desafiar o decadente e moribundo Império do medo que punia o progresso livre, e limitava os direitos dos cidadãos como seu poder sem limites. A única limitação era o desejo dos poderosos que os controlavam e do qual qualquer coisa poderiam fazer contra a lei.
Todavia, certo dia ele recebeu uma missão incomum, a de eliminar um desertor do CCS que de alguma forma remorsos e afetos resistiam aos efeitos da indopatia e do treinamento da escola sombria. Era um amigo seu da comunidade pobre onde fora recrutado. Figueira adentrou e sem esboçar emoções o fitou ensanguentado e babando.
– Adailton? Me tire daqui! Descobri a verdade sobre esse profano solo maldito. O mal habita esse lugar, onde estão nossos descendentes!
– Você desobedeceu o Protocolo de Restrição Social e será neutralizado. Todo resquício de empatia e remorso...
– Espere! – Interrompeu ele vociferando amarrado nu e cheio de hematomas, numa cadeira. – O que está atrás daquela parede muda tudo.
Figueira olhou para o outro lado e fitou outra parede recém derrubada onde corpos negros pareciam mumificados. Curioso Adailton adentrou e pela primeira vez em anos sentiu medo ao fitar os corpos de um casal negro abraçado que fora morto emparedado. Ao seu lado um diário que ele o pegou desvelando a verdade sobre tudo aqui, daqueles que ele descobriu serem seus descendentes e pais de um escravo fugitivo chamado Anderson Figueira. Ele desfolhou o diário com acuidade e notou o que lá faziam.
"Eles queriam mudar o rumo do mundo do eixo de seu destino. Sabiam de coisas vindouras e de todas atrozes crueldades aleatórias rompeu os meandros randômicos do destino. Sorte a minha ter sido letrado ao contrário da minha esposa, porém, é tarde pra nós, mataram a todos e com o incidência como castigo do destino perdido aqui fomos sepultados. Essas últimas palavras a luz dessa vela expõe a sorte de ao menos ter conseguido entregar nosso último filho embora, Bruna Figueira. A tortura, sofrimento e morte desse lugar mudou tudo, antes sonhamos com um mundo onde poderiam haver mesmo escritores negros, mestiços e ilegítimos. Mas acabou.
Ao ler aquilo ele tremeu nas bases. Bruna era o nome de sua bisavó. Abalado, Adailton Figueira então gritou ecoando pelo lugar lúgubre e num rompante bateu uma barra de ferro nos tijolos de pedra que restavam na parede. Soltou seu amigo e pôs fogo no lugar, fora cercado pelos demais agentes da CCS e feridos de morte agora sabiam que o incêndio iria consumir aquele lugar de um mundo que não deveria existir. Então ele sorriu entre as chamas e expirou ante sua vingança.

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