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quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Conto "Os Irmãos Mani"

Disponiblizo a seguir o conto "Os Irmãos Mani" de minha autoria. O conto faz parte da antologia "Devorador de Memórias" e é uma crítica a falsidade ideológica e o duplo padrão. Leia o conto a seguir gratuitamente.



Mani era uma criança negra atípica, apesar do bom coração ele tinha alguns surtos inexplicáveis de choro súbito e sem causa aparente. Mesmo durante uma conversa de amigos entre uma piada e outra ele sem causa aparente caia em prantos. E o mesmo acontecia de modo oposto, mesmo em situações sérias ou mesmo trágicas as vezes ele caia na gargalhada ainda que afirmasse não ter a menor vontade disso, e muito menos motivo uma vez que demonstrava empatia mesmo com a morte de passarinhos ou peixes que criava. Inicialmente pensando se tratar de um caso de bipolaridade logo fora descartada as causas neurológicas e estopim proporcionados. Ainda que tivesse sofrido uma cirurgia cerebral quando bebê. O tempo passou e ele cresceu até que seus pais resolveram contar a verdade. A verdade de que era adotado. Logo após passar por uma cirurgia cerebral misteriosa seus pais morreram num acidente numa rodovia fazendo-o ser posto para adoção na ausência de parentes conhecidos. Sua mãe adotiva, dona Olivia não sabia a ordem da operação, mas exames indicavam funções cerebrais alteradas ao normal como se recebesse estímulos além sensorial por uma hiperatividade desconhecida.

Todavia a medida com que o tempo passava as sensações sem causa sensorial ou de memórias eram cada vez mais frequentes o tomando de soslaio a cair em risos sozinho enquanto caminhava na rua ou em prantos no meio de um stand up. Logo, ele começou a perceber que ao buscar estímulos opostos as sensações irracionais levava este a entrar num tipo de conflito emotivo onde raiva e alegria se misturava, felicidade e depressão, amor e ódio como um conflito interno.
Fora assim que ao sair do trabalho como programador de Inteligência Artificial e fazer sua live diária nas redes sociais que ele começou a pesquisar sobre o orfanato de onde fora adotado. Acessou sua ficha e as condições do qual fora acolhido pela instituição católica responsável pela adoção de inúmeros órfãos.
Uma senhora idosa veio até ele após dizer seu nome e abriu um sorriso cordial afirmando se lembrar dele quando tinha dois anos de idade.
— Você era um bom menino apesar de bagunceiro, mas seu irmão, aquele garoto, não era normal, ele torturava as meninas, e tinha hábito de caçar passarinhos apenas para os empalar lentamente enquanto via suas vidas se esvaecerem em agonia.
Alarmado Jonas ficou consternado com a revelação de um irmão que desconhecia a existência. Acometido por temores e angústias ele arregalou os olhos e abaixou a cabeça a balançando como se memórias antigas viessem finalmente a tona.
— Achava curioso pois mesmo que estivesse longe dele e sem saber o que fazia, você chorava de seus atos enquanto ele ria. Você fora adotado, mas apesar dele quase ter ido escondido no seu lugar, se passando por você, ele permaneceu na instituição até os nove anos quando pôs incêndio na ala das meninas matando uma freira e cinco meninas. 
— Como pode isso? O que vocês fizeram?

— Ele fugiu e nunca mais tivemos notícia. Acho estranho você aparecer agora, meu filho. Na verdade não entendo seu irmão. Mesmo que uma das freiras batesse nele ela fora demitida e o tratavam ybem, mas ainda assim fazia maldades com quem nunca tinha lhe feito mal algum.
— A senhora sabe alguma coisa da minha família?
— Sei apenas que passaram por um procedimento de operação com um ano de idade.
— Que procedimento?
— Deixe-me ver aqui nas pastas das fichas de adoção. Elas são muito antigas... estavam mofando.
A anciã então abaixou-se e procurou numa grande gaveta de metal uma série de pastas em ordem alfabética quando então puxou uma das pastas.
Ela espirrou por causa do bolor que estava crescendo lá mas a abriu prontamente sabendo que nada tinha para esconder.
— Acho esquisito pois logo após o incêndio veio um cardeal aqui fazendo perguntas estranhas sobre vocês.
— Que perguntas? 
— Ele dizia ser de uma ordem católica que nunca ouvi falar, ordem dos ventos, se não me engano. Mencionou que aquele menino era a exteriorização de todo mal encarnado numa pessoa e que poderia afetar o destino. Acho intrigante pois ele mencionou coisas que não sabia como duas meninas teriam sido molestadas sexualmente por ele. Com nove anos! Como pode? Ele dava muito trabalho, mesmo depois de crescido todo  dia tínhamos que limpar mijo na cama dele.
— O que diz os registros?
— Que vocês eram gêmeos siameses ligados pela cabeça. Uma operação inédita fora feita com sucesso para separa-los, era como se tivesse separado bem e mal de uma só mente, literalmente.
Quando Jonas se retirou do orfanato permaneceu imerso em pensamentos difusos e contraditórios como se sua mente assim tivesse de algum modo conexões emocionais com aquele monstro esquecido de sua vida. Sabia ainda que intuitivamente suas mentes comunicavam emoções contraditórias e antagônicas entre si como se a tristeza dele dependesse de sua alegria, e vice-versa. E assim de algum modo aquele monstro insensível provocava aquilo nele para não se sentir mal, provocando mal em vítimas que Jonas nada tinha feito de mal.
Logo começou a chorar percebendo se tratar de algum crime cruel que ele estava cometendo ainda que sem quaisquer informações sobre o que, apenas sensações amargas como se estivesse aflito com a dor de alguma vítima que nada poderia fazer para remediar.
Um ria enquanto outro chorava e vice-versa, um sentia amor quando o outro odiava, pois a depressão de um era a felicidade do outro, assim quando o bom ficava feliz seu oposto precisa fazer mal ante a tristeza que sentia para se sentir melhor como sádico que era, levando o outro a ficar infeliz. Era como uma força parasita que drenava pouco a pouco sua vitalidade.
Todavia, ao chegar em seu apartamento a vizinha lhe olhou estranho e lhe disse. 

— Voltou tão rápido por qual motivo?
— Fiquei o dia todo fora! — Respondeu ele.
Perplexo Jonas perguntou o que aconteceu quando um outro homem apareceu atrás dele e lhe desferiu um soco dizendo.
— Seu tarado, você agarrou minha filha agora a pouco!
— Espere, espere! Nunca agarrei quaisquer mulheres a força, deveria ser meu irmão!
A vizinha desceu até ele e apartou dizendo explicar o motivo pelo qual aquele sujeito de aparência igual a ele parecia agir estranhamente tão autoconfiante ante ela ao chama-la de gostosa quando Jonas sendo tímido mal olhava nos olhos das pessoas.
O homem então aplacou sua ira sabendo todos onde ele fora criado que não possuía tal histórico, mas antes era bom garoto.
— Ele perguntou pra mim se havia alguma chave extra pra entrar em casa, mas ignorei. Mexeu no seu carro e ficou tentando forçar a porta pra entrar. — Prosseguiu a vizinha dizendo.
— Faz muito tempo? Ele foi pra onde?
— Faz 20 minutos. Ele disse que iria voltar para o Restaurante Tereza da Carne. Acho que ele trabalha lá, nesse rodízio de carnes da Zona Sul.
Agora finalmente Jonas Mani sabia onde ele trabalhava, e por isso pra lá seguiu prontamente afim de ter com ele e cerrar todo aquele mal. Teria que tomar providências ante alguém que como uma assombração na sua vida era apenas uma maldição encarnada a se auto realizar em atrocidades que agora ameaçava destroçar toda sua reputação e vida.

Pegou seu carro, mas mesmo que notando que sua identidade sumiu o dirigiu até lá onde notou que estranhamente o lugar estava fechado havia dois meses. Aparentemente abandonado ele estacionou seu Gol azul e desceu até a entrada notando a porta entre aberta. Um mendigo pegando seu cobertor saiu correndo ao ver o rosto dele e implorando para não ataca-lo enquanto uma mulher ao sair de uma casa de frente ao ver Jonas ficou pálida e entrou de volta trancando a porta e a janela. Jonas sentiu-se como um monstro sem que nunca tenha feito nada de grave ou hediondo na vida, antes sendo ainda virgem ao contrário da promiscuidade insana do irmão secreto.
Ao fitar a entrada antes ele se recusou a entrar quando então ouviu o grito de uma mulher em desespero. Entre o medo e a angústia que sentiu dela resolveu arriscar e adentrar aquele lugar como um rato que era seu irmão.
O que lhe viu o deixou paralisado. Uma mulher loira nua amarrada nos pés e nas mãos enquanto aquele homem que carregava sua imagem a chicoteava em meio a uma ereção. Ao fitar o rosto notou Jonas ser uma jovem que paquerava em seu trabalho. Havia brinquedos sexuais ao redor, como objetos fálicos espetados e mordaças quando então o homem parou e virou-se pra ele.
— Enfim os manos Mani juntos! Esperei a vida toda por esse momento. Meu pequeno e mais fraco irmão!
— Por qual motivo está fazendo isso? Você é louco?!
— Você é o culpado, Jonas, você! Só você! Não sabe as dores que sentia a cada sorriso seu ao dar carinho e amor a quem amava, cada alegria, felicidade, respeito me provocava aflições horríveis! Tinha que tomar providências e logo notei que a dor e injustiça com alheios me libertaria do fardo de seu bom coração!
— Mentira! Você sempre fazia isso desde criança e isso me fazia ainda mais buscar praticar a bondade justamente por isso, para anular essa crueldade sádica sua!
Jonas sabia que dizia a verdade, que na verdade a maldade presente em seu irmão era o que levava Jonas agir de modo mais perseverante na bondade para que não sofresse os prazeres sádicos daquele monstro.
— Já era pra você, Jonas. Você mordeu a isca.
Ao olhar ao redor ele fitou no chão sua identidade ensanguentada ao lado do corpo de outra vítima morta no próprio sangue. O sujeito símile tirou uma arma e lhe apontou ante seus olhos e riu.
— Você é meu Jesus Cristo pessoal, sempre foi! Por isso armei tudo isso, para começar de novo, mas com sua vida. Você pagará por esses crimes e então revelarei ao mundo que era você quem fazia isso o tempo todo apenas para me culpar e roubar meu lugar. Direi ao mundo que você me usou todo esse tempo em home office para criar os programas escritos por você enquanto matava e estuprava por aí.
Aquela inversão tosca o provocou náuseas ante a patética tentativa daquele monstro buscar transferir tudo de bom dele pra si e todos seus crimes e crueldades pra ele.
Naquele momento a jovem em prantos gritou por Jonas dizendo.
— Jonas, me tira daqui sei que você não é culpado!
Naquele momento então Jonas tirou a mão de trás das costas e mostrou seu celular que estava transmitindo ao vivo tudo aquilo que acontecia, ainda que o homem tivesse uma voz parecida a dele a confissão e agora as imagens falavam por si. Naquele momento seu irmão gelou arregalando os olhos ao ouvir as sirenes da polícia se aproximando. Desesperado cerrou os dentes semelhantemente a ele, e aproximou-se de Jonas o olhando nos olhos com profundo ódio. Seu irmão como sua metade má era seu pior inimigo, um psicopata cruel e impiedoso.
— Você nem sabe meu nome, Jonas. Como pode fazer isso com seu irmão? Seu Cainita! Tive trabalho de fazer todas essas coisas e tenho que pegar agora o que é meu direito!
— Insano maligno!
Ao ouvir aquilo então a arma para a própria cabeça ao sentir angústias tenebrosas ante o sucesso de Jonas e atirou em si mesmo se matando ao vivo.
O corpo sem vida no chão parece de súbito ter liberto a mente de Jonas de um elo tenebroso como se tivesse um cordão umbilical com alguma maldição que apesar de oposta e nada ter dele, insistia num parentesco de dor parasítica e maldita.
Os homens da lei entraram enquanto Jonas se abaixava afim de não mostrar resistência ante a cena do crime. A delegada soltou a jovem nua e a cobriu com um lençol enquanto tremia de medo. O policial parou ao seu lado e pôs a mão em seu ombro.
— Ouvimos denúncias esparsas de estupros em série desse cara, o retratado falado nos fez investigar você por anos, mas nunca estava na hora e lugar das cenas do crime, muito menos nunca houve provas claras que levassem a você. Sinto muito pelo que aconteceu, sabemos que não tem culpa alguma. A propósito, o nome dele era Esaú Doppler Mani.
O trauma era horrível para Jonas, mas ele seguiu a vida e teve um relacionamento com a jovem em questão ao se recuperar dos traumas daquele maníaco.
Todavia certa noite ele teve um pesadelo horrível, seu irmão parecia gritar dentro de sua cabeça e ao acordar era como se ouvisse seus desejos e pensamentos, algo perturbador e doentio: torturar e matar aquela mulher que agora era sua esposa.
Era como se parte da mente dele ao morrer ainda vivesse dentro dele, de algum modo profano e cruel, e Jonas não poderia seguir aquele caminho. Nunca, mesmo que tivesse que agora carregar o mal que era seu irmão em sua própria mente, como parte de si.


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