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sábado, 2 de julho de 2022

Conto 'A Rainha do Abismo'



Havíamos nos perdido da esquadra de Cristovão Colombo há três dias. Naquele Mar do Medo ao qual Colombo designou como Sargaços, uma nevoa espessa ao amanhecer fizeram-vos desaparecer sob as brumas de águas incógnitas e aparentemente amaldiçoadas. Algas que batizaram o mar flutuavam sinalizando as deficitárias correntes marinhas, as noites úmidas e quentes ficavam encobertas para o uso das estrelas como guias, estávamos entregues a própria sorte, pois nem o astrolábio ou sextante serviam de algo por não sairmos do lugar.

E desse estupor sufocante duma calmaria sem fim estacou nossa tripulação que ante as severidades prolongadas das navegações até aqui, agora se tornava desventura ante o esgotamento sistemático de viveres e mantimentos a homens cada vez mais assustados, estressados e famintos. Não chovia, e a ausência de ventos tornava sob o Sol os dias escaldantes, donde entre o ruborizar dois homens tiveram mal súbito ante a sede e calor intensos. Seus corpos se tornavam refeição de tubarões que agora rodeava a embarcação como nossa única fonte de alimento, ou nossos próprios devoradores. Não bastando a ausência das mulheres de meus homens por meses, mesmo rumores de um tripulante ter sido estuprado ressoou no galeão. O tabu impediam as palavras serem ditas abertamente, mas o clima pesado aumentava as tensões levando a desentendimentos cada vez mais frequentes entre os homens.

Nem mesmo as preces pareciam nos livrar da maldição que recaia sobre nós entregando-nos ao malogrado das privações como caminho deletério aos pecados e morte, pois mesmo eu como imediato temia sermos amotinados contra o capitão.

– Ouça, imediato Ruan Viegas, agora que as névoas se adensaram ruídos como cantos! Parecem sereias tentando nos seduzir aos encantos fatais.

– Largue essa besteira marujo! – Comentei o reprendendo com firmeza sabendo sermos o paradigma restante de segurança a tripulação. – O cansaço mexe com nossa cabeça e prega peças como ilusões de ótica ou auditivas. – Completei para tenta-lo acalmar.

– Imediato, ouvi rumores de que mesmo outros navegantes viram luzes nos céus como fadas! – Comentou o cozinheiro tirando o chapéu suado e sujo ao abrir a boca com dentes sujos. A tripulação fedia por não poder tomar banho por razões óbvias.

– Não temam homens! Fiquem firmes! Logo o vento virá a nos tirar daqui!

Mesmo que tentando animá-los ante as circunstâncias as dúvidas, em segredo, me devoraram as entranhas como a fome ante a falta de variedade de alimentos. Carne de tubarão não rendia os melhores pratos ante exaustão duma tripulação que minguava as esperanças. E os relatos se avolumaram ao cair da noite ante o discernir vago de vultos nas águas e névoas, alimentando os anseios temerários dos tripulantes de que algo funesto nos cercava num ardil e sítio. Fora quando no breu da madrugada ouvi prantos dum homem que clamava em línguas profanas palavras intraduzíveis.

Abri a porta de madeira de meus aposentos, passando perto ao do capitão que agora estava febril e delirante. Meus passos de bota no assoalho de madeira fizeram se sentir quando os ruídos a estibordo cessaram. Parei de súbito, igualmente, ao ouvir o silêncio irrompido pelo ranger das madeiras da embarcação aos embalos hipnóticos do mar. Fora quando vi um vulto esquálido irromper dentre as trêmulas luzes de lampião, era o oficial que carregava algo na mão.

Corri atrás por desconfiar estranhamente dele ser o único a não subir ao convém a luz do dia, optando estranhamente ficar nos porões abafados onde os últimos escravos pereciam estranhamente pálidos.

– Paolo! Paolo! – Sussurrei carregando meu lampião que desvelava rostos cheios de bolhas e peles escamando dos marujos com olhos fundos.

Fora quando um deles me puxou pela mão e a segurando falou.

– Ele despertou algo das trevas e por isso tem reservas de medo ante o desvelar da luz. Um conhecimento profano o qual o saber é capaz de corromper a mente e apenas sob sua língua funesta suas palavras agourentas encarnam sofrimento e insanidade.

Assustado puxei meu braço num repente. O repreendi com severidade de penalizações ante os agouros proferidos que acentuassem ainda mais o clima de medo e expectação da tripulação. Porém, outro homem se somou a ele e falou.

– Deus tenha piedade de nós, imediato Ruan. Algo embarcou nesse Galeão junto a isto e os pobres escravos serviram de alimento. Que Deus tenha piedade desses crioulos.

– Vou penalizar o oficial pelo seu desleixo com eles! Porém, não invente histórias!

Proferi tais palavras estando mesmo eu abalado pelas palavras dele, ainda ante a compostura. Soube que os últimos escravos haviam morrido, porém, segundo o oficial por desidratação  ao calor. No entanto, ao chegar e encontrar o último sem vida notei seu corpo demasiado emagrecido e pálido, como se o seu sangue tivesse sido drenado. Examinei seu corpo com acuidade e severa tristeza ante aquele pobre diabo o qual o único erro que cometeu na vida fora nascer. Odiava aquilo, ainda que meu pai sacerdote comprasse os que eram catequisados para servirem na igreja, a cultura normativa da escravidão era senso comum a toda cultura.

– Este havia deixado sua esposa grávida na senzala para embarcar na esquadra, senhor. – Murmurou um marujo ao me ver. – Não basta as privações, esse parece que teve que carregar os crimes de seu oficial que nem mesmo é capaz de fazê-lo sozinho sem vitimar alheios por seus próprios pecados.

– Do que estão falando? – Perguntei espantado.

– Nossos temores nascem aqui e refletem lá fora. Tentamos alertar ao capitão, mas o oficial nos desacreditou e um dos nossos a delatar agora virou comida de tubarão. Algo cruel está aqui trazendo todos azares sobre nós!

– Por Deus! Não somos corsários! Por qual motivo não me falaram diretamente?

– A rainha das trevas aqui está! Guardiã de corruptores saberes! – Respondeu o homem fitando para baixo em baixa estima, sem esperanças.

Antes que eu lhe desse a réplica me virei e vi um rosto alvo de tão pálido, era a face do oficial. Ele estava parado a minha frente com um sorriso sinistro em tons amarelados de seus dentes podres.

Percebi então que não estava apenas aparentemente cercado por algo funesto que se ocultava a espreita para devorar a tripulação, porém a medida que viam o tempo passar e os mantimentos acabarem, os levavam ao desespero, sem saber onde estavam ou para onde irão, como um pesadelo sem fim. Antes o mal estava no coração da própria embarcação do qual do fundo de minha alma agora sabia. Fomos infectados por aquela presença sinistra, como por um germe contra a fé.

O homem me acertou com um cajado e caí desacordado no chão. Ao recobrar a consciência minutos depois vi o corpo do marujo, aquele que havia falado, agora nos braços duma mulher tenebrosa de vestido cinza. Ela tinha a pele suja como suas vestes e seus olhos luziam os clamores das chamas do inferno. Quando o oficial moveu o lampião a vi melhor notando seu vestido ser vermelho e adornada por colares de pérolas enquanto se saciava num beijo fatal, dado por dentes no pescoço do agora cadavérico defunto que fitava o chão  com olhos vazios de vida. Ela era caucasiana e rosnando pra mim escorreu o sangue de sua vítima em sua boca.

– Sou a esposa de Osak, o eterno, havia fundado uma colônia de vampiros num deserto subsaariano, meu amado cansou de ser faraó tanto quanto rei babilônio, todavia suas dificuldades sexuais que requerem necessidades mais específicas me liberou a expandir seus domínios.

– Um demônio? Por Deus! – Vociferei assustado fazendo o sinal da cruz com os dedos e clamando a Deus pelo perdão de meus pecados.

Porém, ela escarneceu daquilo, pois para ela pouco importava o nome a ela dado. Só que ela necessitava do sofrimento e sangue como oferta de vidas sem culpa como alimento de sua eternidade entre a vida e morte. Tentei interpelar seu nome quando ela se levantava dizendo palavras profanas que não era capaz de traduzir em suas artes de obscuras manipulações. Detentora de um saber o qual o poder corrompe consciências e as cauterizando ensinava reproduzir os males e desigualdades sobre os demais, e a medida que tais palavras penetravam minha mente entorpecia meus pensamentos numa profusão mágica duma multiplicidade de palavras conhecidas, similares. Pareciam muitas coisas, parecia nada, era um eco do abismo a ressoar o discurso da dúvida como sua alçada.

– Qual é seu nome? Quem é você?

– Tive muitos nomes ao longo de eras e civilizações, sendo Sekhmet ou outros, mas hoje prefiro que me chame de Thilil.

Ela de modo hipnótico me guiou por dentre os homens de olhos fixados em temerários brilhos, e subindo ao convém eu parecia embebido num transe de quase possessão. Estava num quase estado catatônico, preso no meu  próprio corpo e agora no convém observava o inevitável sem poder ter domínio sobre mim próprio, por não mais ter poder sobre meu corpo como os escravos no porão. 

Então, o nevoeiro parecia se mover em alucinações de tentáculos vindos do mar quando vi os tentáculos erguer das algas asas de ferro de um grande pássaro metálico. Ela ria zombeteira dizendo que sua profana língua destruía as fronteiras da razão e sanidade para abri-las apenas de modo profano a profecias bizarras da desesperança. Porém, num espasmo saltei meu braço sobre o lampião do oficial que caindo sobre o barril de óleo se incendiou. Saberia que iria morrer, mas levaria aquela eterna as profundezas para reinar como a rainha do abismo que lhe apraz. Ela vociferou em agonia, pois temia a água salina como a luz do dia em sua pele maldita. Seus cabelos embolados tremiam com o sacolejar de suas formas esquálidas, empoladas de sangrias pelos longos períodos que sem sangue bebia de si mesma. Logo, as chamas tomaram a embarcação sob as lamurias da tripulação que jazia em agonia. O que restou da fogueira flutuante fora visto ao longe pela esquadra de Colombo, porém, ao retornar nada mais encontrou a não ser um caderno com anotações em hierografos que pareciam anteceder ao Egito. Dentre os papéis a carta do último letrado a viver até ser comido por tubarões.

"Aqui jaz o barco que conduziu a rainha das trevas ao império que lhe apraz, a do abismo."

Conto originalmente da antologoa 'Verboversos' de William Fontana.

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