A vida era uma purgação da mesmice em rotinas apáticas, desdenhosas do social. Um marasmo de insignificância no estupor de uma torpeza em que no limbo da ausência de amor e carinho todos achávamos que nossa vida não tinha nenhum valor. Mesmo pois nos noticiários o aclamado programa 'Surreality Show' selecionava páreas na loteria da torpeza num frenesi insano pela desesperança ao anunciar: "Você poderá ser o próximo a ser sorteado na loteria das misérias e corrupções, e quem te salvará do jogo da desventura, Jesus? Abandone sua fé e toda esperança, temos apenas que temer a vida ante o descanso da morte."
A vitrine daquela torpeza usava da violência simbólica sob a forma de azar para usar exemplos daqueles que desagradavam o sistema corrupto de sádicos liderado por Noswill e seu séquito de psicopatas niilistas. Sobretudo usava aquilo para destroçar a fé e esperança das pessoas em quaisquer elementos que lhe trouxesse esperança, mesmo que em seu íntimo o povo sempre achava com si mesmo que aquilo nunca iria ocorrer com eles, de serem expostos ao vexatório escrutínio de humilhações e infortúnios inexplicáveis daqueles cães dominantes!
Mohammed Boaventura acreditava nisso, que aquela perseguição insana do caos nunca iria lhe sobrevir. Batizado com o nome do fundador da religião dos pais, ele como refugiado no Brasil viu os países árabes serem dilacerados por guerras e bombas que carcomeram em sofrimento a vida dos seguidores de Maomé e sua cultura agora sobrepujada pelo ocidente enquanto o cristianismo passava por sua maior crise na história. Tendo por ápice a declaração do presidente norte-americano que era uma religião falida tanto como a do Al Corão e a doutrina marxista alegava que apenas uma religião e política globais ao lado "do neoliberalismo salvará o mundo da crise instalada nele. Abrace-nos como sua Fortuna ou aceite os azares dos páreas!" Pronunciava o presidente imponente diante do obelisco de Washington como se fosse uma ereção dele.
A China e a Rússia estavam em embargos no meio do conflito mundial do oriente médio, resistiam penosamente as severidades e adversidades do front e escassez, pois infiltrados por todo seu territórios buscavam sabota-los tanto como outrora foram os países da América Latina. O próximo candidato era um homem chamado Rufus Fortuna, filho de um magnata chamado Osak Fortuna a quem dizia preparar o mundo para um só governo. O fato é que Mohamed como a maioria da população não aceitava a situação e não acreditava que o genocídio a bombas seria alguma fortuna pra eles na pobreza de trabalhos terceirizados. Mas o infortúnio lhe manifestaria o ar de sua desgraça naquele dia.
Se antes as vitrine de celebridades elevadas ao pedestal de ídolos eram exemplos de ascensão a quase divindade, os exemplos opostos agora mostravam sua verdadeira face agourenta a população por amostragem ao gerar apenas "pobres diabos" para serem massacrados. O ódio misantrópico usava de meandros de uma ciência profana do infortúnio como propaganda para desencorajar os que lhe eram contrários, sem quem os socorressem ou impedissem o caos do ocaso que a tudo penetrava. No mundo deles poderiam ser anticristãos, anticomunistas, antiéticos, anticientíficos, antidemocráticos, mas não poderiam ousar discordar deles (como Boaventura) em troca de migalhas de direitos como esmola desdenhosa. Das cinzas que tornavam o mundo juravam erguer um mausoléu necrófilo de seu poder!
Ao levantar e tomar café com leite, ele deixou escapar o copo cheio que caiu ao chão. Ao catar os cacos cortou a mão dando pra trás vindo bater no armário que derrubou a louça quebrando maior parte. Nervoso sabia estar em cima da hora para o estressante trabalho terceirizado de telemarketing aonde por uma miséria de salário tinha de ouvir de reclamações a xingamentos. Todavia, saiu de seu barraco na favela tão nervoso que esquecendo de amarrar o tênis tropeçou no cadarço levando a se desequilibrar sobre um mulato forte a sua frente. Era um dos homens da boca que vendo aquilo uma afronta lhe apontou a pistola 45 o encarando como um cão furioso dizendo.
– Tá me tirando, comédia? Quer ganhar uns furos logo pela manhã?
Ao ouvirem aquilo no beco da favela outro traficante empunhou a Ak-47 levantando-se e apontando pra ele fazendo o barulho que simulava tiro "pow".
O sujeito o empurrou para ele ir embora ao trabalho, como negro e neurodiverso não poderia ter os mesmos direitos que os cidadãos 'normais' a menos que se juntasse com o crime organizado como daqueles sujeitos. Porém, ao descer a rua que barrenta com a chuva do dia anterior ficou escorregadia levando-o a cair de costas se sujando. Estava em cima da hora e mesmo envergonhado com a pequena plateia que escarnecia dele, tentou recobrar a compostura e seguir. Todavia o ônibus atrasou, e ao chegar lotado as pessoas o empurravam como se fosse um leproso por estar sujo de barro.
A via cruzes pensou ter terminado quando soltou, mas ao adentrar na portaria fora parado pelo segurança que levantou as mãos num sinal de que ele deveria quase se render. Logo veio o supervisor em tom de reprovação ao ver o atraso e o estado dele, assim fora taxativo.
– Você está demitido! Toleramos por semanas suas sensibilidades auditivas e sabemos que um autista nem deveria estar trabalhando, mas usando fraudas sedado num manicômio.
Ao se retirar após ouvir aquelas amargas palavras seguiu choramingando quando ouviu um “psiu” da sarjeta. Ao virar-se notou ser um rosto conhecido, mesmo que desfigurado pela sujeira, roupa esfarrapada e barba desgrenhada.
– Tome esse docinho, eu passei por isso tudo antes. Sou o vencedor. Agora é sua vez!
– O senhor era o herói e vencedor da primeira edição do Loteria do Mal? Edgar Nakamura? O único que não morreu vítima do Surreality Show?
O ancião assentiu com o rosto, sorrindo com os dentes podres.
– Ou você faz ideia de quem é, ou as ideias deles fazem você ser o que querem.
– Como eles fazem isso?
– Não espere encontrar motivo naquilo que o motivo é não ter motivo. Mas essa exposição ridicularizadora visa nos tornar centro de tudo para ensinar não haver Deus ou milagres e amor de Jesus, tornando as vitimas centro de uma torpeza que tire o enfoque da fé nesse Deus ou qualquer outro deus, ou política e doutrina que nos traga esperança. Mas saiba que profecia não é sobre ver o futuro, mas o futuro contemplar-nos.
Ao olhar para os lados viram várias pessoas pararem pra vê-lo enquanto num bar a televisão mostrava ele conversando com o ancião. Alguns riam e outros apenas permaneciam assustados, mas quem ousasse se aproximar deles para socorre-los um dispositivo lhes davam uma dose de choque e caso persistissem eram levados pela POA, Polícia de Ordem Antissocial. Naquele momento o velho começou a tremer visivelmente recebendo doses cavalares de choque, até que evoluiu a convulsões e uma parada cardíaca o tomou cessando sua respiração.
– Para ele acabou, sorte ter sobrevivido. Agora é sua vez! – Vociferou uma loira obesa do outro lado da rua. – Discordar da fortuna que são os dominantes é miséria! – Completou ela gargalhando.
Havia apenas uma fortuna possível, através deles. Tudo era eles, e sem eles não poderia haver e ter nada. O recado era claro e ele era a mensagem. E nos autofalantes da rua assim anunciava:
“Não existe crença ou política sem nós e contra nós, pois apenas nós somos a fonte de toda fortuna, justiça e sorte. Por isso quem não está conosco estará amaldiçoados por estarem contra nós.”
Logo, ele apertou os passos, mas não sabia para onde ir ou a quem acudi-lo. As portas se fechavam por onde quer que se aproximasse, as pessoas olhavam ao longe até ele se aproximar e estas se retirarem. O nervoso o tomou de sobremodo, sob todos olhares, sabia que as probabilidades de uma fatalidade agora aumentavam exponencialmente por interferência direta ou por aquela iníqua tecnologia desconhecida. Caminhou assustado até ter uma ideia. Não longe dali havia o centro de transmissão do Surreality Show da Loteria do Mal, onde rumores diziam haver um hipotético gerador de eventos, uma espécie oposta do atratores de eventos naturais ao marcar um indivíduo em particular para o azar lhe tragar.
A hostilização nas ruas cresciam e todos temiam que o mesmo azar ao se aproximar os acometessem. Passou na frente de um restaurante e ouviu a transmissão da televisão falando paulatinamente a mesma lavagem-cerebral.
– "Como observam esse pobre diabo, se tornou párea por falar mentiras sobre nós, por não aceitar que apenas há uma fortuna possível, nós. Todos devem aceitar seus papéis designados na sociedade, mas achando ele que resistir ao sistema levaria ele a ter mais direitos como designado cidadão de segunda classe resulta nisso. Todas as forças cooperam a nós e se opor a nós dá nisso!
O garçom ao ouvir aquilo bateu a porta do restaurante na cara dele enquanto uma jovem do outro lado da rua chorava ao ver o que aquilo o transformava. No céu nuvens cinzas carregavas anunciavam o derradeiro temporal com raios que se aproximavam caindo repentinamente no mesmo lugar. Era como aviso do fato de sua fatalidade iminente. Porém, ele apertou os passos ao centro de transmissão ao lado do Laboratório de Fenômenos Randômicos (LFR), donde os rumores advinha.
Ao se aproximar um raio caiu no poste ao lado contrário da calçada onde estava, a rua estava vazia. Os poucos que passavam corriam e xingavam como se ele tivesse encarnado toda maldição sobre eles. Sabia que ou morreria ou mesmo a população crédula nos dominantes acabariam por lincha-lo. Porém, conseguiu chegar aos portos que parecia uma fortaleza quando a chuva começava a cair. Não havia como entrar senão por um bueiro o qual um túnel levava pra baixo do LFR.
Ele se abaixou quando um raio quase o atingiu, engatinhou por dentro do túnel cheio de lodo e lama. Mas mesmo os ratos corriam dele.
Fez isso por longos minutos até ver luz duma abertura do vestiário do Laboratório onde alguns técnicos e cientista zombavam e reclamavam.
– Aquele pobre diabo sumiu! A televisão tem que mostrar sua desgraça sendo consumada! Pra saberem que todos tem que nos adorar e obedecer cegamente, sem questionar!
– É o bastante o povo acreditar que somos deuses e dominamos todas forças do universo. O Gerador de Eventos fez o povo se prostrar de joelhos a nós e todos comerão apenas as migalhas que quisermos.
Silenciosamente, Boaventura, ele levantou a tampa do ralo e sendo esbelto se contorceu passando quando todos ouviram um abalo no prédio. Os raios caiam sobre eles!
– Tem alguma coisa errada com o Gerador de Eventos? Como pode isso acontecer? – indagou o técnico quando o cientista pós o dedo na boca pedindo silêncio e sussurrou.
– Ou ele conseguiu invadir nosso prédio.
Naquele momento o pobre islâmico saltou por de trás do cientistas pegando um canivete e o pressionando contra o pescoço. Nervoso e sujo ele então num murmúrio falou.
– Me leve agora até o Gerador de Eventos!
Os homens caminharam pelo corredor alvo como leite até chegarem numa sala com uma espécie de rotor que gerava distorções de luzes ao redor. O prédio agora tremia mais e mais, pois o alvo fixado havia chegado ao seu indutor contra si mesmo.
– Como raios vocês conseguem fazer isso?
O cientista então explicou.
– Uns anos atrás um projeto ampliou a aplicação da física quântica provando esta ser os limites dimensionais do universo. A exemplo do Gato de Schrödinger estes criaram uma caixa que expunha os efeitos de dupla fenda e incerteza de Heisenberg tais como um paradigma de multiplicidade dimensional com potenciais de abrir vórtices e portais. O caso fora uma demonstração literal do Gato de Schrödinger onde as probabilidades deste ser morto com cianeto em 50% de chances poderia por meio de uma tecnologia de monitoramento de múltiplos estados observar misteriosamente duas variações sobrepostas de gatos, um agonizando e outro incólume até que ao ser aberto e o estado único ser definido.
O homem então engoliu seco com a faca no seu pescoço e suando prosseguiu.
– Isso fora concluído pela sobreposição dimensional de probabilidades podendo ser aumentada mediante a variabilidade probabilística pela variedade de escolha, tanto como da dupla fenda, tripla fenda e além. Assim ao roubarmos e dominar essa ciência de modo estabilizado nos permitiu criar uma tecnologia capaz de não apenas controlar probabilidades e estados de informação como potencial saltar entre as múltiplas dimensões dela. Em suma o multiverso. Uma tecnologia secreta da mais sofisticada engenharia social e dimensional que nesse mundo usamos para esse programa, e eliminar desafetos.
Quando o cientista terminou o discurso se urinou nas calças tal como as vítimas daquela tecnologia que levava eles se deleitarem no sadismo. Ele bem pensou em degola-lo, mas a tecnologia estava fazendo isso pra si. Ao leva-lo a fatalidade dos eventos diante dela, ela simplesmente se explodiu junto ao prédio apenas para induzir a profecia autorrealizável de mata-lo. Era o fim daquela profana tecnologia usada como arma, mesmo que as custas dele.
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