Acreditava que meus vívidos surtos de delírios dissociativos da realidade fossem apenas um caso crônico de psicose. Sem saber bem o motivo o qual não lembrava exatamente a razão de minha amnésia e ter ido parar ali, os efeitos dos surtos foram aumentando gradualmente até chegar a um nível de delírio que tornou necessário tais medidas.
Enquanto comecei a escrever isso num momento de lucidez que logo fora sucedido por uma sequência de imagens que pareciam afetar o meu campo perceptivo da visão e culminou em mulheres que outrora amava vir ter comigo. Era como se as alucinações fossem orientadas por desejos, vontades ou mesmos sentimentos ao ser tomado por um turbilhão de sensações decorrentes ante a intensidade que rivalizava mesmo com o mais impactante sonho. A doutora então adentrou o lugar e dirigiu-se até mim ao notar minha condição.
— Chamem a enfermeira para me ajudar, ele está tendo mais um surto de projeção de pensamentos! — Vociferou ela enquanto segurava-me até ser amarrado no leito. — Fique tranquilo estamos aqui para ajudar, estamos desenvolvendo a droga para diminuir a intensidade dos surtos ao menos.
As imagens que me sobrevinham agora eram aterradoras, monstros e outras criaturas de meus mais profundos e íntimos sonhos de modo que gradualmente o mundo real a volta parecia ser afetado com reações dos médicos presentes.
— Precisamos que você se foque em algo agradável! Pense em algo bom, nas mulheres que você amava! — Vociferou novamente a doutora Sophia Aurea ao me fitar nos olhos. — Na sua mente você é o deus, você controla sem mundo interior!
— Está fugindo ao controle, doutora! — Resmungou um enfermeiro de quase dois metros de altura, mas que parecia de alguma forma temoroso ante aquilo.
O homem me segurou e aplicou uma injeção quando vociferei.
— Eles vão te pegar! O monstro de três braços atrás de você!
O homem se supetão saltou para trás se esquivando quando a doutora disse para mim.
— É tudo coisa de sua cabeça! Não existe monstro algum! Pense nisso!
O enfermeiro então num golpe me empurrou com força contra o leito e aplicou novamente uma injeção do estilo mata leão e tudo desapareceu ante mim.
Ao acordar no dia seguinte e muitas horas depois fitei o vazio do quarto onde estava, e uma suave chuva batia contra a janela fazendo descer gotículas pelo vidro. Fitei aquilo por algum tempo com a mente vazia quando desejei fugir naquele momento. Por coincidência ao olhar para a porta observei que ela estava entre aberta. Tirei as amarras sem esforço quando me levantei e caminhei pelo corredor sorrateiro ao me esgueirar entre as trêmulas luzes de vela como se tivesse faltado luz.
Caminhei agachado por muitos metros até fitar a sala da Doutora Sohpia Aurea que parecia conversar com outro doutor. O que ouvi me deixou estupefato.
— A projeção de seus pensamentos na realidade exterior estão aumentando a intensidade. — Comentou o doutor que na realidade dei-me conta se tratar de um físico. — O surto psicótico projetado faz de alguma forma imanar energia e partículas do vácuo quântico ao mundo real, dando lugar a matéria em qualidades de realidade diferentes emergindo na nossa realidade. Há alguns níveis de realidade dessas projeções que extrapolam a ilusão sendo tão reais quanto nós. É como se ele tivesse um universo dentro de si sendo expelido.
Como aquilo poderia ser possível? Para eles a diferença da qualidade da projeção de pensamentos difiniria uma ilusão de realidades sobrepostas como se da mente dele imanasse um universo interior ao exterior. Ouvi aquilo perplexo quando então a doutora interrompeu e continuou.
— Por enquanto essas projeções estão sobre controle, mas hoje achei que iria matar o enfermeiro.
— O alcance das projeções mentais tem oscilado muito, sendo menores num ponto, mas agora tendo ido além dos limites do hospital. Ele parece ser mais poderoso que a mãe dele.
— Talvez por ter sido fruto das próprias alterações na realidade. — Respondeu a doutora perplexa.
De repente me lembrei, minha mãe havia ficado grávida de verdade apenas por desejar ter um filho sem saber que seu filho se tornaria um dos mais poderosos projetores de realidade gerando pensamento projetados, com um poder nunca visto dentre todos os 'Homo Omni'.
Não se sabia ao certo quando surgiram os primeiros homo omnis pois por séculos eles se camuflavam dos demais sua condição de deuses, porém, alguns mitos antigos pareciam aludir a presença inóspita de nossa espécie, como a lenda dos gênios da lâmpada o qual minha mãe contava se tratar de um homo omni aprisionado por outro mais poderoso. Alguns especulavam que erámos como o elo perdido entre homens e deuses num tempo perdido nas brumas da história humana.
Mas o fato era que por começar a lembrar-me daquilo tive sensações incomuns que poderia pôr em risco a gente. Mas continuava a ouvir a conversa dos dois de soslaio.
— Como está o progresso do desenvolvimento da droga? — Indagou o doutor a doutora Sophia.
— Ela provoca uma inibição na intensidade dos pensamentos, mas enfraquece o espírito dele é como se parte de sua centelha de vida fosse determinada pela intensidade desses pensamentos. Parece que ele é totalmente mente e seu corpo um pálido invólucro de carne projetado por ela.
— Talvez realmente a mente dele mesmo projete seu corpo. Isso faz pensar que os seres projetados pelo desejo deles possam ser tão reais quanto eu e você. — Comentou o doutor coçando a cabeça.
— Possível, mas o fato é que ao ocorrer essas projeções exteriores de pensamentos a uma atividade que nunca vi em determinadas partes do cérebro como a pineal. Os fenômenos quânticos têm origem lá, talvez seria a solução se conseguisse inibir as atividades exclusivamente dessa parte do cérebro.
— Temos algo sem precedentes em nossas mãos doutora, não podemos deixar de estudar a ordem desse poder transcendente, uma ciência desenvolvida disto poderia nos tornar literalmente deuses de nossa própria realidade. Estamos tendo dificuldade para discernir ilusão de realidade. — Concordou o físico.
— Ou produzir esse poder poderia seria capaz de produzir nossa própria destruição como a mais poderosa arma. Você viu que a mãe dele destruir uma cidade inteira quando foi hostilizada pela população. E ela declarou que nem havia usado todo potencial. Apenas desejou que a cidade desaparecesse. Vou te dizer, se João Dourado for mais poderoso que ela talvez os rumores de que seria capaz de criar uma realidade mais real que a nossa seja verdadeira, é um poder sem limites conhecidos pela ciência e talvez por si próprio.
Mal conseguia acreditar naquilo quando repentinamente lembre-me de tudo mais, do que eu mesmo me fiz esquecer pois acreditava que pensar ser uma pessoa normal assim seria. Tudo aquilo era um ardil criado por minha própria mente afim de tentar compreender-me e por limites a mente mais poderosa conhecida. Fora então que eles perceberam minha presença e se levantaram assustados vindo em minha direção. O físico então comentou.
— Não se preocupe, ele não está criado nenhuma alucinação!
Mas era tardio o clamor dele, pois a doutora gritou socorro aos enfermeiros e quando me dei conta de estava sim tendo mais uma projeção de meus pensamentos, eles próprios, os doutores e os enfermeiros, assim como todo o hospital fora uma criação de minha mente numa tentativa de cessar seus efeitos no meu mundo, pois tudo que mais ansiava era ser normal.
A doutora veio em minha direção quando então ela se deu conta que desaparecia e assim soube que ela mesma era um fato originado em minha mente transcendente os tornados a inexistência da única fonte de realidade e vida possível como divindade que parecia ser. A doutora ficou assustada ao perceber que ela mesma havia advindo de minha mente, como poderia se ela se lembrava de toda uma vida?
Conto da antologia 'Contos do Além Realidade' de 2020.